Doze dias em alto mar – da Flórida até Tortola

Tudo pronto para a grande travessia.
Depois de vários problemas que atrasaram nossa partida aqui vamos nós.
Uma semana antes de partir o monitor do nosso cockpit que transmite todos os dados do chartplotter pifou.
Na tentativa de arrumar acabamos queimando o chartplotter.
A vontade era de chorar.
Tentamos mandar arrumar, mas ficaria quase o mesmo preço do que comprar equipamentos novos.
Chegamos a pensar em desistir desta temporada no Caribe, afinal já estamos muito atrasados. Oficialmente a temporada de furacão começa em junho.
Como navegar 1500 milhas sem chartplotter?
Na realidade as cartas náuticas pelas quais navegamos estão em dois programas que ficam no IPad.
Nem tudo estava tão perdido como parecia, mas perderíamos muito o conforto com relação ao AIS, radar e sonar.
Pensamos em trocar todos os eletrônicos por novos, mas isso levaria cerca de 1 mês.
A vontade de chegar ao Caribe era tanta que decidimos comprar os eletrônicos idênticos ao que tínhamos antes, mas usados, no Ebay, e apenas instalá-los no lugar dos antigos queimados.
E assim fizemos.
Assim que os equipamentos chegaram fizemos a substituição. Claro que nessas horas, quando vc tem pressa, é que as coisas acontecem.
Depois de vários testes descobrimos que a saída “VGA” do chartplotter não estava funcionando. Ou seja, o monitor do cockpit não servirá para nada.
Ficamos bem irritados porque gastamos dinheiro a toa e não temos mais tempo de tentar arrumar ou comprar outro chartplotter.
Decidimos que iríamos assim mesmo.
Afinal, navegamos pelo IPad e o chartplotter estava funcionando. Só não teremos as informações dele no cockpit.
Já que besteira pouca é bobagem, descobrimos que nosso radar parou de funcionar também.
A sensação que dá é que não é para irmos embora dos EUA.
Ficamos navegando na terra do tio Sam por mais de dois anos e tudo funcionou perfeitamente. Na hora de sair tudo começa a pifar.
Depois de mais calmos e decididos a partir começamos a organizar as coisas.
Na marina onde estávamos fazendo os reparos do Oby conhecemos um casal, Claudette e Will.
Casal americano, muito simpático, que vive a bordo de um veleiro há 6 anos. Nunca fizeram longas travessias, mas já foram várias vezes para as Bahamas.
No dia que estávamos partindo de Green Cove Springs eles vieram se despedir e nos ajudar a soltar os cabos e comentaram que gostariam muito de um dia navegar no nosso barco.
Na mesma hora dissemos: “em poucas semanas estaremos partindo para as Ilhas Virgens Britânicas (BVI), se quiserem vir junto”.
Sabíamos que seria muito cansativo essa longa travessia só em dois. Então, se tivéssemos alguém para nos ajudar nos turnos poderíamos dormir mais e ficar mais descansados.
Eles mostraram interesse e ficaram de nos dar resposta.
Alguns dias depois, nos ligaram aceitando o convite.
Fiquei bem feliz, afinal com mais gente a bordo poderia ter minhas 8 horas de sono.
Começamos a organizar tudo e fazer as compras de provisão. Serão cerca de 12 dias longe de qualquer civilização, precisamos de bastante comida, principalmente agora com 4 a bordo.
Fui diversas vezes ao supermercado enquanto Daniel organizava o restante.
A previsão do tempo não estava nos ajudando muito, então ficamos esperando uma boa janela de tempo para a partida.
Contratamos um meteorologista americano, muito bom, Chris Parker, que nos acompanhará por toda a travessia e poderemos falar com ele diariamente através do SSB.
Assim que uma boa janela de tempo apareceu e Parker confirmou, zarpamos.
Saímos de St Augustine, Florida, USA e nosso destino é Tortola, BVI.
Será uma travessia de aproximadamente 1300 milhas, cerca de 10 dias.
Deixamos a marina de St Augustine sábado, 07 de maio às 11:00.
A saída da marina foi com um pouco de emoção, pois a marina fica em um rio e a correnteza é bem forte por lá. Não foi fácil sair da nossa vaga, mas conseguimos.

Na saída para uma grande travessia a ansiedade, a excitação, o medo estão a flor da pele. Nunca sabemos como será. A mistura de sentimentos e sensações é inexplicável. Frio na barriga, garganta seca e tremor interno eram inevitáveis. Um mix de ansiedade, alegria por estar voltando a navegar depois de alguns meses de muito trabalho no barco e até tristeza, por estarmos partindo dos EUA depois de mais de 2 anos velejando por águas americanas.
Sempre fomos muito bem recebidos por lá, fizemos grandes amigos que permanecerão para sempre em nossas vidas, então como sempre a saudade e a dor da partida tomam conta de nós.
Mas ao mesmo tempo a vontade de desbravar novos lugares nos leva dali de forma mais suave.
Os próximos dias serão em alto mar e nunca sabemos o que nos espera, mas ao mesmo tempo a sensação é muito boa.

Deixamos St Augustine para trás e o vento soprava bem fraquinho e por isso mantivemos o motor ligado.
Cerca de uma hora depois o vento melhorou, então subimos as velas.
Como é bom ver o Oby velejando novamente. Ouvir o barulhinho do vento e da água passando pelo casco é bom demais.
Com o vento fraco, o mar parecia um tapete.
Como nunca é demais pedir proteção, conforme a tradição nas nossas longas travessias, oferecemos flores para Iemanjá. Claudette e eu jogamos as flores. Expliquei a ela quem era Iemanjá e o significado de oferecer flores a Rainha do mar. Ofertamos as flores e ficamos emocionadas.
No final da tarde o vento se foi, ligamos o motor.
Como sempre, nas travessias mais longas, na partida, o Oby recebe a visita de um pássaro. E desta vez não foi diferente. Nessa hora sempre sinto algo a mais, como se alguém estivesse ali me olhando, me protegendo.

Estou aqui no meu 2º turno desta travessia. Um lindo dia de céu azul com um mar azul violeta hipnotizante.  O vento sopra fraco, 10 nós pela nossa popa e o mar está calmo com ondulação de aproximadamente 1 metro. Agora são 14:39 e já percorremos cerca de 140 milhas náuticas desde de nossa saída.
Will e Claudete estão conosco e isso facilita muito nossa travessia. Caso contrário seríamos apenas Daniel e eu e os turnos seriam mais difíceis. Agora podemos dormir até 9 horas se quisermos, e isso faz toda a diferença.
O meu turno é alternado com o da Claudete. Uma noite eu faço das 21:00 até meia noite e na noite seguinte da meia noite até as 3:00. E durante o dia das 9:00 ao meio dia ou do meio dia às 15:00. Tem dado para descansar bastante.
Will ficou responsável pelo turno da manhã, pois neste horário falamos por radio (SSB) com Chris Parker. E Daniel faz o turno da madrugada das 3:00 às 6:00, já que ele é uma corujinha.
Logo depois da saída fui fazer uma comidinha, afinal estávamos com fome.
O primeiro almoço da travessia foi quiche de abobrinha e salada verde com salmão defumado. Modéstia a parte, estava bem gostoso, ou era fome mesmo.
Depois do almoço fui tirar uma soneca, afinal meu turno seria o da madrugada e com tanta ansiedade para a partida não havia dormido o necessário.
Acordei para meu turno e o céu estava indescritivelmente estrelado. Claudete ficou comigo por algum tempo conversando no cockpit. Vimos algumas estrelas cadentes, trocamos algumas ideias e logo depois ela foi descansar.
O mar estava bem tranquilo, o vento era de través e o Oby navegava confortavelmente. A previsão era entrarmos na Gulfstream no meu turno. E assim foi.
Logo depois que assumi o mar mudou, o vento mudou e a correnteza começou a nos cuspir pra fora, o que não era nada mau. O vento que estava no través começou a soprar pela popa e mar ficou um pouco desconfortável. Mas ainda pequeno com ondulação de 1,5 metros.
Daniel acordou e veio mudar as velas. Era hora de colocar “asa de pombo” (genoa para um lado, mestra para o outro).
“Voamos” a uma velocidade de 8,0 – 9,0 nós, chegando a bater no velocímetro 10,4 nós.
Depois que cruzamos a Gulfstream, que levou cerca de 12 horas, o mar voltou a acalmar e o vento diminuiu.
E o Oby começou a andar menos do que deveria. Estávamos com uma correnteza contra  bem forte. Nossa média era de 4.0 nós.

Os dias e as noites tem sido fantásticos. Céu azul e noites estreladas. Mar calmo e tudo tranquilo a bordo.
Will e Claudette são bem legais e tem ajudado bastante.
No início estava receosa, pois sabíamos que eram pessoas ótimas, mas nunca tínhamos convivido tão próximo e quando se está em um barco, menor que um apartamento, por 10 dias juntos enfrentando situações desconhecidas e muitas vezes estressantes não é fácil compartilhar o mesmo minúsculo espaço.
Mas até aqui tudo está perfeito.
Hoje nosso almoço foi comida mexicana preparado pela Claudette. Feijão, chilli, guacamole, souer cream. Estava bem gostoso.
Os turnos tem ficado mais fáceis. Pouco movimento a nossa volta. De vez em nunca um navio aparece ao longe. Nada preocupante. Mas tem ficado cada vez mais escasso.
Já percorremos umas 270 milhas e tudo está correndo conforme o esperado.
O vento esta madrugada mudou para o nosso través vindo de sul. Estamos velejando com a armação normal das velas e o Oby navega muito bem agora, fazendo 6 nós de velocidade com 10 nós de vento.
Nossos dias tem sido bem tranquilos a bordo, sem muitas novidades.
O vento vai e volta, e nessas, as vezes ligamos o motor e as vezes desligamos, dependendo da vontade de Éolo. Mudamos as velas um pouco para ajustá-las dependendo do vento. Hoje por exemplo subimos o balão.
Nosso balão ficou a noite inteira armado, apesar de eu não gostar nem um pouco de deixá-lo durante a noite. Mas o capitão gosta.
O balão é muito sensível a qualquer alteração de vento e a noite as coisas são sempre mais complicadas e perigosas. Mas como não havia nenhuma nuvem no céu que pudesse nos indicar alguma mudança no vento ou rajadas, o capitão decidiu mantê-lo.

Durante os turnos dá para descansar um pouco, escrever, pensar na vida, bater papo quando tem alguém acordado ou simplesmente admirar o céu, o mar e o mar de estrelas no céu.
Um dos meus passatempos prediletos é ser hipnotizada pelos plânctons luminescentes. É impressionante a beleza e a magia da natureza. Todo movimento de água do Oby faz com que milhares de pontos brilhantes apareçam na lateral e na popa do barco. Um show de fogos de artifício.

Logo antes da mudança do meu turno vi no horizonte uma claridade forte, como se fosse uma cidade ao longe ou um navio. Chequei no AIS e não havia nada ao nosso redor. Pensei que pudesse ser Bermuda, mas Bermuda estava a mais de 500 milhas de nós. Avisei o Daniel, que me substituiria no turno, que talvez pudesse ser algum navio, para ele ficar de olho. Muito estranhamente esse clarão nunca apareceu, não era navio, não era Bermuda. Até agora não fazemos ideia do que era.

Conforme o esperado, o vento mudou um pouco, estamos com vento na nossa proa e portanto orçando bastante. A ondulação também mudou e está vindo pela proa, o que torna tudo mais difícil e desconfortável. Não é mais tão fácil dormir, para cozinhar é muito mais cansativo, mas faz parte da brincadeira.

No final do meu turno desta noite Claudette veio para me substituir e os plânctons estavam “atiçados”.
Ficamos admirando por um longo tempo essas pequenas luzes se acendendo ao lado do Oby. E quando fomos olhá-los pela popa, ficamos de queixo caído. O Oby motorava naquele momento, fazendo com que uma grande quantidade de água fosse movimentada pelo hélice, causando turbulência. Essa turbulência fazia com que os plânctons se aglomerassem e grandes bolas de luz, do tamanho de bolas de futebol, eram formadas e então “arremessadas” da popa do Oby. Várias “bolas” saindo da popa e outras se formavam a cerca de 2 ou 3 metros de distância. Um espetáculo a parte.
Claudette assumiu o turno e eu fui dormir. Na realidade, tentar dormir. Não obtive muito sucesso.
Daniel faz o turno das 3:00 até as 6:00 e é a hora que ele mais tem energia. Então imagina só. Ele não para. Trima a mestra, abre genoa, trima genoa, fecha genoa e assim é durante todo o turno. Essa noite foi engraçado. O barco estava adernado para boreste e de repente o barco adernou para bombordo.
Pensei, ele deu um bordo. Poucos minutos depois o barco estava adernado para boreste novamente. E em poucos minutos novamente lá estava eu jogada pra bombordo de novo. E aí por fim ele voltou para boreste.

O mar tem sido nosso grande amigo. A ondulação não passou de 1.5 metros e céu limpo todos os dias.
Hoje no meio do dia o meu coração veio parar na boca. O vento ficou fraco e decidimos motorar.
Daniel girou a chave para ligar o motor e … nada. O motor não pegou. O coração disparou, a boca ficou seca. Um minuto de silêncio, os olhares se cruzavam, mas ninguém falava nada.
Além da chave para dar a partida no motor que fica no cockpit temos um botão de acionamento de emergência que fica na cabine de popa.
Daniel sugeriu que tentássemos dar a partida pelo botão de emergência. E foi o que fizemos. Facilmente, como sempre, nosso lindo motor começou a funcionar sem nenhum problema. Felizmente o problema não era com o motor e sim algum cabo ou algo assim no sistema de acionamento que fica no cockpit. Mas como temos o acionamento de emergência no interior do barco isso não é problema. Pode ser consertado quando chegarmos em Tortola.
Por fim, foram necessários alguns minutos para eu conseguir me recuperar das pernas bambas e do coração acelerado.
Durante a tarde tivemos a primeira chuva. Uma leve garoa que não durou 5 minutos e logo depois o sol voltou.

A convivência a bordo continua ótima. Will e Claudette são muito especiais. Engraçados e sempre de muito bom humor e com sorriso no rosto diariamente fazem com que a viagem seja mais tranquila e agradável.
As noites continuam estreladas. De vez em quando algumas nuvens tem aparecido, mas logo se dissipam e conseguimos continuar contemplando o Universo. A lua está crescente e temos quase meia lua que deixa nossas noites muito iluminadas. Apesar de termos apenas metade dela o seu brilho é impressionante refletido na água, fazendo com que as noites fiquem claras e se possa enxergar ao longe.
Por outro lado, enquanto a lua não se põe, deixando tudo escuro, os plânctons luminescentes não são mais tão visíveis.
A vida por aqui é assim. Admiramos aquilo que a natureza nos oferece a cada dia. As nuvens, o sol, a lua, os planctôns, a chuva, as estrelas, o mar, o vento. E cada dia ela nos presenteia com uma das suas belezas.

Temos deixado duas linhas de currico atrás do Oby. E hoje, depois de 6 dias no mar, fomos presenteados, no começo da tarde, por um belíssimo atum. Um Blackfin Tuna de aproximadamente 4 Kg.
Daniel tirou o “peixão” da água, Will limpou, Claudette filetou, eu preparei os acompanhamentos para o delicioso sashimi que Daniel cortou. E bota delicioso nisso. Foram duas refeições com sashimi e posso dizer, e a tripulação concorda, que foi um dos melhores sashimis que eu já comi até hoje. Realmente de dar água na boca.
Depois do delicioso almoço, o vento voltou. Desligamos o motor e começamos a velejar. O vento era de Sudeste (SE) e nosso objetivo agora é navegar para o leste por alguns dias e depois para o sul.
Vento de SE, proa para Leste. Sabe o que acontece nessas horas? O barco aderna. Orça apertada. O Oby navegava muito bem e rápido, mas inclinado de 20 a 30º. Com o vento apertando, o mar começa a ficar mais ondulado. E é, realmente, desconfortável. Andar pelo barco, cozinhar, pegar coisas nos armários, na geladeira, tudo fica muito mais complicado e cansativo.
Devemos navegar assim por dois dias até o vento começar a diminuir e mudar para leste, aí navegaremos para o Sul, com proa pra Tortola, BVI. Paraíso à vista!!!!
O resultado da primeira noite de orça apertada foi: muito sono.
O barco adernado, o mar com uma ondulação não muito grande, mas com um período entre as ondas bem curto, fazia o Oby mexer bastante. Conclusão: não consegui dormir.
O dia seguinte foi bem exaustivo, afinal não havia conseguido pregar os olhos. Durante o dia consegui dormir um pouco, Daniel fez o meu turno e eu aproveitei para descansar.

Durante a tarde estávamos sentados no cockpit conversando e Will viu ao longe algo grande boiando.
Peguei o binóculo e tentei ver o que era, mas não estava fácil visualizar.
Só escuto o Will dizendo: vamos ver o que é, parece uma balsa salva-vidas.
Na mesma hora Daniel ajustou as velas e começamos a navegar naquela direção.
Fomos nos aproximando, tentando identificar o objeto, um pouco nervosos, pois imagina se realmente é uma balsa salva-vidas?
Quando estávamos a cerca de uns 10 metros conseguimos identificar.
Era uma espreguiçadeira de praia, destas brancas de plástico.
Deixamos-a para trás e voltamos para nosso rumo.

De vez em quando, um pássaro aparece para nos dar um oi, mas apenas isso, nenhum outro animal apareceu. Nada de baleias e golfinhos e nem peixinhos deliciosos para nossas refeições.
Já ia me esquecendo de contar que tivemos mais um peixe que foi fisgado. Era noite quando ouvimos o barulhinho da linha correndo pelo molinete. Quando se escuta esse barulho a alegria é grande. Imagina-se um belo peixe, saboroso e delicioso que nos alimentará por mais uns dias. Mas neste caso não foi bem assim. Colocamos o peixe para cima e ele era horroroso. Corria um azul pela sua pele, mais parecia um enguia elétrica. Tomamos muito cuidado, tentamos identificá-lo pelo nosso livro de peixes do Atlantico, mas sem sucesso. Parecia uma mistura de barracuda com enguia. Devolvemos ao mar.

Hoje completamos 9 dias de travessia. Já percorremos cerca de 1000 milhas.
Todos os dias temos falado com Chris Parker ou pela manhã ou no final da tarde e ele nos auxilia qual a melhor estratégia para evitar ao máximo o vento leste.
O Oby continua navegando em uma orça apertada. Como o barco está bem adernado temos que nos apoiar com o corpo nas paredes, batentes das portas e em vários lugares para entrar no banheiro, lavar a louça, fazer comida, tomar banho. Conclusão: vários roxos pelo corpo.
Hoje acordei bem mal humorada pois foi uma noite muito mal dormida. Meu sono é muito leve, qualquer barulhinho eu acordo e a posição para dormir é bem desconfortável. Estou dormindo na cama de mar que fica na sala. O lugar mais estável do barco, mas mesmo assim não está fácil pegar no sono.
Fiz meu turno pela manhã e logo depois voltei para cama para tentar dormir um pouco.
O cansaço era tanto que peguei no sono assim que deitei e dormi profundamente.
Acordei bem melhor e mais feliz.

Surpreendentemente, os dias continuam lindos, céu azul e mar calmo, apesar do barco adernado.
Hoje a natureza nos presenteou com mais um fenômeno.
No final da tarde estava cozinhando um risoto de abobrinha com brie quando Daniel, Will e Claudette me chamaram para ver o por do sol, que estava magnífico.
Ficamos ali alguns minutos observando tamanha beleza. Aquela bola gigante laranja avermelhada chegando próximo ao horizonte. De repente, quando só restava o último pedacinho do sol, uma coloração esverdeada apareceu ao redor do sol e em poucos segundos quando ele desapareceu no horizonte, um flash verde, extremamente forte e bem definido surgiu por uns segundos.
Já tinha ouvido falar do flash verde mas nunca tinha tido a felicidade de admirá-lo. E eis que hoje a mãe-natureza nos mostrou mais um espetáculo.
O brilho verde é um fenômeno óptico e aparece devido a refração da luz, como um prisma.
Após o show do por do sol, jantamos o risoto felizes por termos assistido um maravilhoso espetáculo.
Como meu turno começava às 21:00 resolvi “tirar uma soneca” para poder enfrentar minhas três horas de trabalho.
Depois do magnífico e mágico por do sol passamos por uma situação de muito medo.
Por volta das 20:30 ouvi o Will chamar o Daniel para ajudá-lo na observação de um navio que não aparecia no AIS.
Os dois ficaram ali analisando acompanhando o navio por uns 10 minutos e chegaram à conclusão que estávamos em rota de colisão. Como meu turno já iria começar levantei para ajudá-los.
Daniel tentou chamar o navio no rádio algumas vezes e não obteve nenhuma resposta.
Como já havia ouvido algumas histórias de que muitas vezes alguns capitães não respondem ao rádio, mas quando uma mulher tenta chamá-los eles respondem, me prontifiquei a tentar contato.
E foi o que fiz. Depois de 3 tentativas, recebemos a seguinte resposta:
“Chinese, no speak English”
Ficamos indignados, afinal, como um navio comercial daquele tamanho não tem AIS (equipamento obrigatório para barcos comerciais) e não fala inglês. Ao menos o básico, o rumo, a velocidade…
Daniel tentou mais uma vez contato pelo rádio, mas sem sucesso.
Decidimos então prontamente mudar nosso rumo para evitar colisão.
Afinal, um navio chinês, que não tem AIS e não fala inglês, coisa boa não estava fazendo por ali.
Estávamos no triângulo das Bermudas, no mínimo a cerca de 300 milhas de terra mais próxima. Como estamos sem o radar, que queimou logo antes da nossa partida, a única alternativa era observá-lo com o binóculo. Mas era bem difícil definir com exatidão qual era o rumo, pois ele tinha diversas luzes ligadas no deck e nenhuma luz oficial de navegação.
Estávamos na vela, mas logo antes da mudança de curso Daniel havia ligado o motor em caso de emergência, se tivéssemos que fazer alguma manobra mais rápida.
Logo que mudamos nosso rumo, a distância entre nós era pequena, cerca de 0,3 milhas, percebemos que ele também havia mudado o rumo, mas assustadoramente ele havia aproado o navio em nossa direção novamente.
Estávamos sendo perseguidos nesse momento.
Foram cerca de 30 minutos de muita tensão e medo.
Daniel engatou o motor e colocou o Oby para velejar de través tentando ganhar maior velocidade e se afastar o mais rápido possível.
O Oby com as velas em cima e motorando navegava a 8 – 9 nós.
E o navio continuava com a proa em nossa direção.
Desci, apaguei todas as luzes de navegação e AIS para dificultar nossa localização.
Will sugeriu que deixássemos separados a mala de abandono, o Epirb, o telefone via satélite em caso de termos que abandonar o Oby e irmos para a balsa salva-vidas.
Deixei tudo organizado, o mais fácil possível, para podermos acessar em caso de necessidade. Separei meus documentos e o do Daniel, roupa de mau tempo e voltei para o cockpit para ajudá-los na visualização.
Depois de vários minutos, que mais pareceram horas, de muito medo começamos a perceber que o navio começou a se distanciar.
Continuamos motorando e o acompanhando pelo binóculo até que ele sumiu no horizonte.
Mantivemos os olhos bem abertos durante toda a madrugada. Mas felizmente nunca mais tivemos sinal do barco chinês.
Acreditamos que era um navio chinês fazendo pesca ilegal de baleia ou tubarão.
Depois, durante nossas conversas a bordo, descobrimos que em uma das tentativas de contato pelo rádio, Will ameaçou o navio chinês dizendo que iria contactar a guarda costeira americana.
Talvez essa ameaça tenha os feito tentar nos atingir ou ao menos nos assustar.
Esse não costuma ser nosso procedimento a bordo. Tentamos sempre manter as relações mais amigáveis possível.
Passado o susto e o medo todos foram dormir e eu segui com meu turno.
No turno do Daniel, durante a madrugada, ele contou que cruzou com um veleiro sem AIS muito próximo a nós. Ele tentou inúmeros contatos pelo rádio mas ninguém respondeu. Segundo ele não dava para ver direito pois estava bem escuro, mas parecia que o veleiro estava parado e provavelmente estavam dormindo.
Como estamos no Triângulo das Bermudas, começamos a brincar que o veleiro e o navio chinês eram barcos fantasmas perdidos no mar há muitos anos. E essa brincadeira rendeu até o final da viagem.

No nosso 10º dia navegando o vento começou a apertar e consequentemente o mar começou a crescer.
Apesar das ondas, com todo esse vento, o Oby “voa”.
O vento tem estado por volta dos 20 nós e o mar em torno de 2 a 3 metros.
Antes do meu turno da madrugada tivemos rajadas de 25 nós e que durante o meu turno se estabilizaram e o vento assobiava na casa dos 25 nós. O mar continua grande com ondas desencontradas e com período entre elas muito curto pelo través fazendo o Oby “rolar” bastante.
Apesar de tudo isso, cada dia que passa, temos a certeza que escolhemos o melhor barco. Ele é seguro e mesmo com todo esse marzão muito confortável.
O nosso piloto automático,  Gasparzinho, o fantasminha camarada, tem dado conta do recado. Não nos deixou na mão nenhuma vez.
No 11º dia, o mar está ainda maior. Ondulação de 3,0 metros com algumas ondas que chegam a 4 metros, e o período entre elas ainda continua curto.
Desde ontem todas as velas estão com o segundo rizo e estamos tentando reduzir nossa velocidade, pois a previsão é de chegada durante a noite.
Nenhum velejador consciente gosta de chegar em um porto pela primeira vez durante a noite.
Primeiro porque não conhecemos o porto e nem sempre podemos confiar totalmente nas cartas náuticas. Os bancos de areia mudam, os corais crescem, então, nada como uma navegação visual. No nosso caso passaremos em uma área onde o mar mudará abruptamente de 1000 metros de profundidade para 20 metros podendo ocorrer a formação de ondas nessa área.
Para não chegarmos durante a noite, pusemos o Oby à capa, por cerca de 3 horas.
Por à capa significa colocar as velas de um modo que o barco fique totalmente estabilizado e imobilizado, independente do tamanho do mar e do vento. A vela mestra é caçada, a genoa aquartelada e o leme colocado completamente à barlavento.
E funciona mesmo, nem parecia que estávamos naquele mar desconfortável.
Às 23:00 o Oby voltou a navegar e acho que com pressa de chegar, pois ele voava.
O vento continuava forte, 25 nós, e a ondulação um pouco desconfortável, com uns 3 metros e período bem curto.
Muitas vezes o barulho da água correndo pelo casco faz parecer que o vento está muito mais forte do que parece. Com isso, acabei levantando inúmeras vezes durante a noite para espiar a velocidade do vento e somado com a ansiedade da chegada e o mar que não ajudava muito quase não conseguir fechar os olhos mais uma vez.

Terra à vista!!!!!
Por volta das 7:00 da manhã avistamos terra.
Depois de 12 dias só vendo água, a sensação de ver terra é muito boa.
Mas, ainda, temos algumas milhas a percorrer até chegar na capital das Ilhas Virgens Britânicas, Tortola, onde faremos a imigração da tripulação e do Oby.
Oby flâmula uma bandeira das BVIs, fazendo-o sentir-se em casa.
Fomos passando pelas ilhas e as identificando no mapa, já fazendo um primeiro reconhecimento.
Passamos por Anegada que fica bem ao norte, depois Virgem Gorda e finalmente chegamos em Road Town, Tortola às 12:00. Exatamente 12 dias após a nossa partida.
Depois de muita luta, conseguimos uma vaga em uma marina que na realidade é uma marina apenas para barcos de charter. Foram várias tentativas e felizmente eles nos aceitaram. O preço excelente e um banheiro de spa que qualquer velejador sonha, especialmente depois de 12 dias no mar.
Daniel desceu para fazer nossa entrada, enquanto nós ficamos a bordo começando a organizar a “bagunça”
Só o capitão pode descer com todos os documentos dos tripulantes e do barco.
Enquanto ele não volta com os passaportes e carimbos nós somos proibidos de descer.
O Oby flâmula a bandeira de registro na popa e no stay do lado de boreste a bandeira amarela de quarentena, que significa que ainda estamos em processo de entrada no país.

Foram 1547 milhas, 288 horas, velocidade média 5,3 kts, velocidade máxima 10,4 kts, 74 horas no motor, 50 galões de diesel.
A sensação de ter vencido um desafio que no começo parecia quase impossível é muito boa.
Um dia antes de sair de St Augustine, nos EUA, me peguei pensando e imaginando chegando desta travessia e olhando para o Daniel e dizendo, nós conseguimos, nós fizemos.
E não é que alguns dias depois eu realmente pude olhar pra ele e dizer: “nós conseguimos, nós fizemos”!!! Aqui estamos nós.
Bem-vindos ao Caribe!!

E as aventuras continuam…

Assistam o vídeo da travessia:

https://youtu.be/vAczS7ZLa80